terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Tudo posso, mas nem tudo me convém[1]

A imprensa noticiou que no dia 5 de dezembro de 2020, a Rússia tinha se tornado o primeiro país do mundo a iniciar a vacinação de seu povo contra a COVID-19, com a Sputnik V. No 8 de dezembro de 2020, foi a vez do Reino Unido, com a vacina desenvolvida em parceria entre a farmacêutica americana Pfizer e a empresa de biotecnologia alemã BioNTech. Pouco tempo depois, a aprovação também ocorreu nos Estados Unidos, no Canadá, na União Europeia e assim por diante.


No Brasil, o início da vacinação efetivamente ocorreu no dia 17 de janeiro de 2021, com as 6 milhões de doses da vacina CoronaVac, do Instituto Butantan, as únicas que o Brasil tem até agora, apesar de uma população de mais de 207 milhões e serem necessárias duas dozes para a imunização completa.


O Ministério da Saúde fez a divisão proporcional: a região Norte está recebendo 708 mil doses; o Nordeste, quase 1,5 milhão de doses; o Sudeste, pouco mais de 2,5 milhões; o Sul, 750 mil; e o Centro-Oeste, 574 mil doses.


Nessa primeira fase, serão vacinados os brasileiros e brasileiras dos chamados grupos prioritários, como os profissionais de saúde, idosos com 75 anos ou mais, idosos com mais de 60 anos que moram em asilos, indígenas que vivem em aldeias e comunidades ribeirinhas. Repetido que todos deverão tomar duas doses da vacina.


O problema todo é que, apenas para esses grupos prioritários, serão necessárias quase 30 milhões de doses e, como dito, o Brasil só dispõe de 6 milhões, devido à falta de capacidade técnica e logística da indústria no momento atual.


Mas o que não faltam são pessoas insensíveis, egoístas e desumanas, que acham que, por terem dinheiro, podem fazer o que quiserem.


Nesse sentido, já se notam as movimentações de grupos, instituições e pessoas, públicas e privadas, tentando ativar o comércio privado da vacina para os consumidores que se disponham a comprar, antes mesmo que os fornecedores atendam aos grupos prioritários já estabelecidos pelo Estado, em nome de toda a sociedade.


Por comprar em grande quantidade e para atender o interesse público, normalmente, o Poder Público consegue pagar preços bem mais baratos do que as vacinas comercializadas livremente no mercado. Por exemplo, se uma dose da vacina contra a covid-19 custar R$ 50 para o Estado, no comércio, a depender da lei da oferta e da procura e voracidade de ganhos dos fabricantes e fornecedores, poderá custar até 10 vezes mais. Então, até essa diferença substancial no lucro serve de impulso ao comércio inoportuno da vacina. O poder de decisão, nesse caso, transfere-se para os consumidores.


É só o consumidor pensar e analisar com bom senso: se uma pessoa jovem e saudável adquire e toma a vacina antes que os grupos prioritários, os componentes destes sairão prejudicados. Ao prejudicar um profissional de saúde, da segurança e da limpeza pública, por exemplo, no fundo no fundo quem se prejudicará é a própria sociedade e o cidadão, que poderão não contar com os serviços essenciais desenvolvidos pelos referidos profissionais.


Além dos consumidores, o próprio Estado, através dos serviços de vigilância sanitária e fiscalização, também tem uma importante função para tentar coibir o comércio privado da vacina, até que todas as pessoas dos grupos prioritários tenham sido vacinados.


Não há nenhuma dúvida de que os mercenários serão capazes de invocar o princípio constitucional da livre iniciativa privada (capitalismo) e outros que regem a ordem econômica, para tentarem obter na Justiça o “direito” de comercializar a vacina. Em contraposição, e com um peso e uma densidade jurídica bem maiores, estão os princípios constitucionais da dignidade humana, da supremacia do interesse público sobre o privado e da função social da empresa e da propriedade, que podem até justificar o direito administrativo de requisição do Poder Público.

Não resta alternativa, senão alertar e apelar para a razão, o bom senso e, se realmente for necessário, a atuação firme, corajosa e tempestiva do Poder Judiciário, o nosso último anteparo contra as injustiças.


Vale lembrar que na Revolução Francesa de 1789 os intelectuais mais ilustres apontaram os passos que a Humanidade deveria dar rumo ao seu progresso: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.


A conduta que se espera dos brasileiros nesse momento é de fraternidade ou solidariedade, jamais, de egoísmo! É hora de se aplicar a sabedoria bíblica: tudo posso, mas nem tudo me convém.


Só resta observar o comportamento que os nossos compatriotas e autoridades irão adotar em relação ao assunto.


Francisco Demontiê Gonçalves Macedo é graduado e pós-graduado em Direito, graduando em Gestão Pública, pós-graduando em Política e Sociedade e Servidor Público Federal. 

[1] Escrito em homenagem a todos os homens e mulheres que têm o discernimento espiritual e a coragem para pensar, expressar-se e conduzir-se com amor, mesmo sendo livres para serem maus.


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