domingo, 31 de julho de 2022

Mínimo existencial

 

Todo ser humano nasceu dotado de interesses[1] e todas as suas ações possuem uma finalidade. Ao buscar atingir os seus interesses, ocorre de surgir uma concorrência frente aos interesses de outros seres humanos, que pode ser resolvida amigavelmente ou originar um conflito de interesses. Para que não prevalecesse sempre os interesses dos mais fortes, na resolução desses conflitos, e com a finalidade resolver outros interesses coletivos, as sociedades antigas e modernas criaram um ente fictício, denominado Estado, que é regido por leis gerais e abstratas feitas pelos próprios membros da sociedade[2], ou por seus representantes devidamente eleitos[3].

A Constituição de 1988 é a lei mais importante do Brasil, seja por ela ter recriado o Estado[4] Democrático[5] de Direito[6] atual[7], em substituição ao que havia anteriormente[8], seja porque todos as pessoas[9] e todas as outras leis são obrigadas a respeitá-la, sob pena do uso da força, se necessário for.

Um dos temas mais importantes que a Constituição de 1988 teve que se preocupar foi com o modo de produção que a sociedade brasileira iria eleger. Vale lembrar que o modo de produção está relacionado à maneira como a sociedade produz seus bens e serviços, como os utiliza e como os distribui. Desde que ruiu no mundo o modo de produção feudalista, disputam as ideologias capitalistas e socialistas, ou um meio termo entre elas.

O modo de produção capitalista baseia-se na propriedade privada dos meios de produção[10] pela burguesia, que substituiu a propriedade feudal, e no trabalho assalariado, que substituiu o trabalho servil do feudalismo. O capitalismo é movido por lucros que resultam dos valores conquistados através do trabalho exercidos por todos os membros da sociedade. Já o modo de produção socialista baseia-se na propriedade social dos meios de produção, que passam a ser públicos ou coletivos, não existindo empresas privadas. Nele não há separação entre proprietário do capital (patrão) e proprietários da força do trabalho (empregados).

A Constituição de 1988 fez a opção pelo modo de produção capitalista mitigado, uma vez que adotou a livre iniciativa na ordem econômica, mas a vinculou à valorização do trabalho humano e à existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social, conferindo aos membros da sociedade brasileira uma gama substancial de direitos fundamentais individuais e sociais. No fundo, no fundo, a Constituição pretendeu estabelecer, por meio de suas normas e demais leis, uma compatibilização entre os interesses econômicos dos capitalistas, os valores sociais resultantes da força dos trabalhadores, ambos devendo ter por finalidade última a dignidade humana de todos.

Segundo a Constituição, a livre iniciativa econômica tem que levar em conta os valores individuais e sociais do trabalho, a soberania nacional, a propriedade privada, a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, a fim de assegurar a todos os brasileiros e brasileiras uma existência digna.

A lei maior brasileira não trouxe um conceito de dignidade humana, devendo o seu conteúdo ser extraído do seu texto e das demais normas jurídicas que regem a sociedade. Uma coisa, porém, é certa: sendo a dignidade humana a norma matriz de todos os direitos fundamentais, sua violação é uma das mais graves e intoleráveis no Estado Democrático de Direito, e que deve ser combatida por todos, principalmente, por aqueles que têm a obrigação e a força para cumprir e fazer cumprir a Constituição.

A Constituição conferiu uma série de direitos e deveres individuais e coletivos fundamentais aos brasileiros, que podem ser tidos como um verdadeiro piso vital mínimo de existência humana. Entre os direitos fundamentais sociais está o salário-mínimo, que representa o valor mais baixo de salário que os empregadores podem legalmente pagar aos seus empregados pelo tempo e esforço gastos na produção de bens e serviços no âmbito nacional. Sobre o salário-mínimo, a Constituição diz que será fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo. É sabido que essa norma constitucional não é respeitada, o que retrata uma indiscutível falta de compromisso das autoridades[11] para com a Constituição e as leis, assim como também uma irrefutável indiferença popular, aqui denunciada até mesmo como um gesto de legítima esperança[12].

Não se tem notícia de que o Poder Judiciário brasileiro tenha conhecido[13] ação judicial em que algum trabalhador tenha feito pedido contra o patrão, a fim de receber um salário-mínimo que cubra efetivamente o pagamento de todas aquelas necessidades vitais básicas previstas constitucionalmente. Sabe-se, porém, do ajuizamento de ações coletivas, pelas pessoas legitimadas, com o objetivo de obrigar o Poder Executivo a implementar políticas públicas, como a construção de hospitais, presídios e creches etc. Nessas ações, tem-se visto o Pode Executivo, na qualidade de réu, usar sempre como defesa a tese da reserva do possível, ou seja, das limitações do orçamento público, ao que o Poder Judiciário tem respondido, de forma muito excepcional, com a afirmação da tese da garantia constitucional do mínimo existencial.

Esse assunto – mínimo existencial – veio à tona mais recentemente por meio da Lei nº 14.181, aprovada pelo Congresso Nacional, em 1º de julho de 2021, versando sobre o superendividamento, entendido como a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.

Essa regulamentação veio com a edição, pelo presidente da República, do Decreto nº 11.150, de 26 de julho de 2022, que considera mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a 25% do salário-mínimo vigente na data de publicação do Decreto, o que corresponde atualmente ao valor de R$ 303,00, tendo em vista que a Lei nº 14.358, de 1º de junho de 2022, fixou o valor do salário-mínimo em R$ 1.212,00.

Uma vez que a Constituição é a lei maior existente no País, todas as demais normas deverão estar de acordo com ela, sob pena de serem consideradas inconstitucionais e, portanto, invalidadas. A Constituição já havia estabelecido que o mínimo existencial para os brasileiros era o valor de um salário-mínimo, de sorte que o Decreto presidencial, sob o pretexto de regulamentar a Lei do Superendividamento, não poderia ter ofendido a Constituição com a redução do mínimo existencial para apenas 25% do valor do salário-mínimo.

Não se diga que uma coisa é o valor do salário-mínimo e outra coisa é o valor do mínimo existencial, porque ambos dizem respeito ao valor, estabelecido em moeda corrente, que uma pessoa deve dispor para ser considerada minimamente digna, não importa se na condição de trabalhador ou consumidor, porquanto ambos são o mesmo ser humano.

Vale frisar que o valor do salário-mínimo já não cobre o pagamento das despesas capazes de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador/consumidor e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Reduzir o piso vital mínimo para o valor de apenas R$ 303,00 é o mesmo que se legalizar a miséria humana entre os brasileiros, ao arrepio da Constituição que um dia foi elaborada e aprovada por todos os patrícios.

Todo trabalhador é consumidor, não sendo possível se fazer a separação entre a condição de vida de um e de outro. Se um trabalhador não pode sobreviver com menos de um salário-mínimo, tampouco um consumidor poderá sair da condição de endividado quanto lhe restar a miséria de um quarto do já sofrível salário-mínimo.

Admitir-se que haja uma redução tão drástica no fator básico de dignidade humana dos brasileiros, ainda mais de ordem normativa geral, gera uma situação de instabilidade muito perigosa, do ponto de vista econômico, social e jurídico, na medida que se aumenta sobremaneira as possibilidades de edições legislativas futuras, com a finalidade de tornar a miséria uma condição humana aceitável num País rico como o Brasil.

Em suma, a prevalecer, realmente, o entendimento do presidente da República, reproduzido literalmente e sem meias palavras no Decreto nº 11.150, estar-se-á instituindo, normativamente, a mais absoluta miséria no meio da sociedade brasileira, em manifesta violação à Constituição e à vontade soberana do povo brasileiro, nela representada.



[1] Necessários e supérfluos.

[2] Democracia direta.

[3] Democracia indireta.

[4] Entidade jurídica movimentada por pessoas pagas para fazer prevalecer o império da lei sobre todos.

[5] Todo o poder emana do povo.

[6] Regido e subordinado à lei.

[7] O Brasil já teve outras sete Constituições.

[8] Constituição de 1969.

[9] Estado, sociedade, pessoa físicas jurídicas e entes despersonalizados.

[10] Indústrias, terras, capital e etc.

[11] Pessoas dotadas de direito ou poder de ordenar, de decidir, de atuar, de se fazer obedecer.

[12] Um dia alguém também denunciou a indignidade causada pela escravidão, e acreditou nessa verdade, apesar de achar que poderia estar remando contra a maré, mas o fato é que a escravidão um dia veio a cair e hoje é considerada inclusive crime.

[13] Apreciado e julgado.

35 anos da Constituição de 1988

Hoje faz 35 anos que o povo brasileiro, através de seus representantes eleitos, promulgou a Constituição de 1988, o símbolo maior do Direito...